Reportagem especial

Campanha Dezembro Verde, veterinários e grupos de proteção tentam coibir abandono de animais que aumenta no final do ano

Pâmela Rubin Matge


As carinhas peludas e simpáticas que ilustram todas as fotos ao longo desta reportagem atestam um passado ou um presente impiedoso: o de animais abandonados. Humano, impune e racional, o ato ganha contornos de crueldade e têm incidência maior nesta época do ano. É que com a a proximidade dos feriados de Natal e de Réveillon, bem como do período que antecipa as populares férias de verão, muitas pessoas viajam e usam de diferentes métodos para "livrarem-se" de seus pets.

Em todo Brasil, uma campanha denominada Dezembro Verde visa coibir o abandono de animais. Em Santa Maria, por meio de uma iniciativa do vereador Adelar Vargas, Bolinha, (MDB) foi protocolado, no dia último dia 20, o Projeto de Lei nº 8.792, que institui no município o mês Dezembro Verde. No próximo dia 18, às 15h, haverá, inclusive, um expediente em defesa dos animais, que será realizado na sessão plenária da Câmara de Vereadores. No dia 21, a partir das 10h, a campanha contra o abandono será divulgada na Praça Saldanha Marinho.

Ações semelhantes ganharam motivação no país na última terça-feira, quando projetos que elevam penas para maus-tratos a animais avançaram no Senado Federal, mas ainda precisam passar pela Câmara dos Deputados. A discussão se acalorou depois da morte da vira-lata Manchinha por um segurança de um supermercado. A proposta é aumentar a pena de um a quatro anos de detenção, além da punição financeira de um a mil salários mínimos para estabelecimentos comerciais envolvidos no crime.

Segundo o comandante do 2° Batalhão Ambiental, major Rois Jandirlei Flores Tavares, a grande dificuldade da cidade tem sido realocar os animais que precisam de amparo.

- Nós atendemos a parte legal, chamamos os técnicos, os veterinários para laudos e a Guarda Municipal atua no recolhimento. O problema é que seguimos sem um lugar adequado para esses animais. Também não temos o número exato de ocorrências porque é difícil identificar a autoria dos crimes.

Conheça estabelecimentos comerciais que permitem entrada de animais em Santa Maria

A problemática do abandono envolve também fatores de saúde pública e do reconhecimento da importância que animais domésticos exercem na sociedade. Contudo, iniciativas municipais e a própria lei não parecem surtir efeitos práticos.

- Não fazem valer a lei. Há décadas, vou a audiências e nunca vi ninguém pagar uma multa. Nunca dá em nada e cada juiz tem uma compreensão diferente do que são os maus-tratos. Acho que não deveria ter essa interferência e, sim, haver Termos de Ajustamento de Conduta (TACs) entre os tutores que mal-tratam e grupos de proteção, de forma voluntária. As pessoas tem de ser fiscalizadas e conscientizadas do mal que fazem - diz Marlene Nascimento, veterinária e fundadora do Clube Amigos dos Animais.

Para o vereador Bolinha, é preciso sensibilizar os gestores públicos e a sociedade.

- Existe a Central de Bem Estar Animal, que não possui estrutura física e equipe suficiente para atender todas as demandas. A prefeitura recorre aos protetores independentes que atuam incansáveis para protegerem os animais, mas precisam de apoio e responsabilidade por parte do Poder Executivo.

Segundo a prefeitura, por meio da Superintendência de Comunicação, casos de abandono são 3% dos animais que andam pelas ruas. Os outros 97% são de animais semidomiciliados, que possuem proprietários que os criam em condições de rua, eximindo-se de suas responsabilidades.

O único projeto mencionado foi de microchipagem, já aprovado pelo legislativo. Foram comprados 1, 5 mil chips, mas a implantação inicial será restrita a cavalos de carroceiros, ainda, sem prazo divulgado.

Em meio ao cenário de irresponsabilidade, polêmicas e fragilidade da legislação, o que é comum à rede de protetores e veterinários é o princípio básico de uma sociedade civilizada: o respeito à vida, inclusive, as de quatro patas.

POR QUÊ ABANDONAM?

  • Férias
  • Falta de dinheiro
  • Comportamento ou porte indesejado
  • Ninhada inesperada 
  • Mudança de endereço 
  • Falta de tempo
  • Nascimento de filhos 

ENDEREÇOS DA NEGLIGÊNCIA E DO ABANDONO

Quem mora entre os municípios de Santa Maria e Itaara, nas proximidades da conhecida Estrada do Perau, tem relatos de sobra quando o assunto é o aparecimento de animais, sobretudo, cães e gatos da noite para o dia. Soltos em via pública e dentro dos pátios, a prática é corriqueira e impune.

O chefe de cozinha Daniel Gossler, 32 anos, mudou-se para região há cerca de um ano. Neste curto período de tempo, já conta com sete animais - cinco gatos e dois cachorros -, os quais recolheu depois de serem abandonados e encaminhou para castração. O número não contabiliza, ainda, outros tantos que foram adotados por outras pessoas. Uma das alternativas para inibir a soltura dos bichos foi instalar câmeras de videomonitoramento.

- Costumam largar na madrugada. Uma vez, vimos quando uma caminhonete estacionou, e uma mulher desceu deixando uma caixa com um gato na estrada. Não consegui identificar a placa. Na minha opinião, o problema decorre de uma precária educação básica em nível nacional, da punição muito branda para quem abandona e maltrata animais e da falta de um castramóvel, como foi implantado nas cidades de Santa Cruz do Sul e outras. Pois, poderia (o castramóvel) passar de bairro em bairro, fazendo a castração dos animais - sugere Daniel.


Além da Estrada do Perau, regiões afastadas do Centro do cidade, junto a áreas de descarte irregular de lixo e terrenos baldios também são endereços do abandono.

Instituição de ensino e pesquisa para a comunidade acadêmica, e área de lazer à população em geral, a Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) testemunha, há anos, casos de quem passa por lá e deixa animais "esquecidos" pelo campus de Camobi. 

Em 2014, foi criado o Projeto Zelo, uma iniciativa de conscientização para coibir o abandono. Neste ano, o projeto foi reeditado e conta com uma parceria entre a Pró-Reitoria de Extensão, Hospital Universitário (HVU) e a própria comunidade.

De acordo com a professora Fabiana Alves Stecca, integrante do Zelo, estão cadastrados cerca de 75 animais que circulam pelas áreas externas da universidade, a maioria castrados ou encaminhados a tratamentos específicos. A ideia é ampliar as ações, instalando mais placas de sinalização com informações sobre a legislação que criminaliza a negligência com os animais.

- Estamos trabalhando com ações educativas. Nosso objetivo principal é diminuir o abandono. Historicamente, os animais são encontrados na segunda-feira e com um aumento significativo no período de férias. Na falta de parques na cidade, consideramos positivo o fato de a UFSM ser um espaço aberto e democrático. Mas não é por isso que é uma terra sem lei. Algumas pessoas vêm passar o fim de semana e deixam seus bichos aqui - conta Fabiana.

Abandono e maus-tratos podem ser denunciados ao setor de vigilância da UFSM nos telefones (55) 3220-8080 e (55) 3220-8279, além da página do projeto no Facebook.

NAS RODOVIAS

É no descampado das estradas estaduais e federais, na ausência de câmeras ou de qualquer pessoa que possa flagrar a ação, que muitos motoristas abandonam seus bichos de estimação, principalmente cães.

Devido a dificuldade de identificar a autoria ou mesmo a materialidade do crime, não há um levantamento do número de casos, segundo informa Éder Macedo, chefe da 9ª Delegacia da Polícia Rodoviária Federal (PRF), com sede em Santa Maria. Não raro, gatos e cavalos feridos também são alvo dos maus-tratos e do abandono.

- Identificamos o abandono quando o animal aparece sozinho em lugares totalmente incomuns e desorientado, o que acaba aumentando o risco de acidentes. Mas, há casos em que os cachorrinhos são bem cuidados, de coleirinha, que a gente percebe que foram largados. Também deparamos com crueldade como animais em sacolas plásticas ou ninhadas dentro de caixas às margens da rodovia - conta Macedo.

Sempre que o animal é resgatado, a polícia esbarra na falta de uma rede de proteção e encaminhamento, seja ela pública ou privada.

- Não existe um encaminhamento formal e, sim, uma conduta de grupo, por meio de WhatsApp e outras formas de divulgação. Não conseguimos entregar para alguma instituição, mesmo que de forma temporária até a adoção. Acabamos contando com apoio de protetores de animais, que também têm vários outros casos para resolver. O ideal seria encaminhá-los para um local adequado, mas sabemos que nem sempre há verba e estrutura para isso - esclarece o policial.

MAIS CONSCIENTIZAÇÃO

Foi em uma ação da PRF que Preta e Esfregão (foto ao lado), vítimas do abandono, foram adotados e hoje vivem junto ao posto policial.

- Esses foram acolhidos e são cuidados, mas não temos espaço adequado para outros cães. Por isso, é importante que as pessoas reflitam antes de abandonarem. E, aos que quiserem ter um animal de estimação, que pensem naqueles que sofrem, passam frio e fome nas rodovias e, não somente naquele bonitinho, que acaba estimulado fins comerciais - enfatizou a policial militar Nádia Cristina Mozzaquatro.

A PRF em Santa Maria recebe denúncias pelos telefones: 191 e (55) 3221-8277. É importante repassar o máximo de informações como fotos, local, cor e placa do carro da pessoa que abandonou o animal.

NAS CLÍNICAS

"Se tu divulgas animais para doar, o que tu recebes em troca é mais abandono na porta do teu estabelecimento."

O desabafo acima é da veterinária Luciana Wolle e reflete uma realidade comum a muitos profissionais que trabalham em clínicas e petshops da cidade. Os locais acabam sendo ponto de descarte para quem não quer mais ou não sabe o que fazer com ninhadas de cães e gatos. As situações são diversas: de quem simplesmente deixa os pets em frente aos estabelecimentos àqueles que internam o bichinho para algum tratamento de saúde e nunca mais voltam.

Os casos não são esporádicos e se repetem a toda semana. A veterinária salienta que o abandono é generalizado, pois apesar de existirem mais cães como animal de companhia, as cadelas têm dois partos por ano, enquanto as gatas podem parir a cada três meses. Por outro lado, cães exigem mais dos donos, fazem mais bagunça, são mais "espaçosos", por isso, precisam ser educados em relação a local para fazerem suas necessidades fisiológicas, o que acaba sendo um fator para que as pessoas desistam do animal. Os gatos aprendem sozinhos e costumam ser mais independentes.

- Nunca estamos sem animais para doar. É secar gelo. Os abandonos ocorrem mais nas férias e no final de ano, mas também de acordo com a época de desmame das ninhadas. É uma cultura das pessoas acharem que o veterinário tem que fazer por amor, como se a responsabilidade fosse nossa e não tivéssemos o direito de receber pelo nosso trabalho - relata Luciana, proprietária da Veterinária do Parque.

No Bairro Itararé, o casal de veterinários, Sabrina Sgorla e Rafael Zachow Barcelos, proprietários da Prontovet, depara com situações semelhantes cotidianamente. Há cerca de um mês, a cadela Fofuxa (foto acima) foi internada para um tratamento contra parvovirose. Recuperada em menos de uma semana, segue à espera do dono, que nunca mais apareceu. Uma ocorrência já foi registrada na Delegacia de Polícia de Pronto-Atendimento (DPPA) e o próximo passo será ingressar com uma ação na Justiça. O próximo passo é disponibilizada para adoção.

- Ela é um entre muitos que deixaram aqui. A gente trata, castra e tenta doar, mas não damos conta - lamenta Rafael.

RESGATADOS DO PRECONCEITO


O "Ceguinho" , que acabou sendo adotado por Sabrina e Rafael, há quatro anos, é outra vítima da irresponsabilidade.

- Ele é um yorkshire e está conosco há quatro anos. Foi resgatado em um estado deplorável e com pêlo embolado. Tosamos, castramos e tentamos doá-lo, mas não conseguimos porque ele é cego. Então, ficamos com ele. É muito querido e se adaptou muito bem - conta Sabrina, lembrando que é frequente o abandono de animais idosos ou com alguma deficiência.

O preconceito vai além. Conforme Luciana, o controle da população de animais de rua por meio da castração e da posse responsável esbarra na resistência de alguns donos:

- Não adianta ter um cachorro em casa relativamente bem cuidado, se ele pode sair do pátio eventualmente e "namorar". Mas, aí, entramos em uma questão muito pior que é o machismo e a relutância nos proprietários em castrar cães machos.

3 opções para o seu pet nas férias

O QUE DIZ A LEI?

A responsabilidade sobre atos contra animais é amparada na legislação federal, por meio da Lei 9.605/1998 (Lei de Crimes Ambientais) e pelo artigo 164 do Código Penal, que prevê o crime de abandono de animais para aqueles que introduzirem ou deixarem animais em propriedade alheia, sem consentimento.

O artigo 32 da Lei 9.605 enfatiza que "praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exótico tem pena/detenção de três meses a um ano e multa.

O mesmo se aplica para quem realiza experiência dolorosa ou cruel em animal vivo, ainda que para fins didáticos ou científicos, quando existirem recursos alternativos. A pena é aumentada de um sexto a um terço, se ocorre morte do animal.

Além disso, dentro da mesma lei dos crimes ambientais, a sanção poderá ir de seis meses a cinco anos, dependendo do modo, lugar e detalhes da prática nociva.

POLÍTICAS PÚBLICAS DIVIDEM OPINIÕES
Para o veterinário Rafael Zachow Barcelos falta vontade política:

- Fiz parte do Condema (Conselho Municipal de Defesa de Meio Ambiente de Santa Maria), mas as coisas não saem do papel. O projeto de microchipagem e outros estão lá mas há quanto tempo não avançam?

A veterinária Luciana Wolle comenta que se existem políticas públicas municipais voltadas à proteção de animais, essas são desconhecidas. De acordo com ela, as pessoas têm de sentir no bolso, o peso da crueldade por meio do endurecimento de leis:

- Não existem animais de rua, existem animais que foram abandonados nas ruas ou animais que nasceram desses que foram abandonados. Deveria ser cobrado, pelo governo, a procriação de animais, e a venda só ser permitida por canis credenciados, de onde só fossem entregues castrados, pois hoje qualquer um pode comprar um animal e procriar como bem entender.

Cynthia Pereira Soares, da equipe diretiva do Projeto Quatro Patas Santa Maria acredita que a castração, por meio de um castramóvel ou de uma parceria público-privada auxiliaria na diminuição do abandono, bem como a chipagem ajudaria para identificar o tutor do animal e responsabilizá-lo pelo crime.

- É necessário um conjunto de ações para o controle de natalidade, com foco nos animais que vivem em situação de rua e animais de tutores carentes - acrescenta Cynthia.

Mensalmente, o Quatro Patas, formado por um grupo de pessoas que busca apoio de colaboradores e voluntários para auxiliar animais em situação de rua, de protetores independentes, de tutores carentes e comunitários recebe cerca de 120 pedidos de ajuda por mês para animais abandonados.

Fundadora do Clube Amigos dos Animais, veterinária e defensora da causa animal há décadas, Marlene Nascimento relativiza a responsabilização do poder público e entende que deva haver um engajamento de toda comunidade.

- Às vezes, a função de um castramóvel tira a responsabilidade do dono em providenciar a castração, o que acaba sendo pior. Sem falar no interesse político, a troca por votos ou, ainda, da terceirização do serviço, pois sabemos que há ONGs que se beneficiam da causa animal por mero interesse financeiro. Dentro da universidade e voltado à população carente, aí, sim, eu acreditaria em um castramóvel. A prefeitura, por sua vez, não tem um controle do número de animais de rua, o que seria importante. Mensalmente são castrados de 500 a 800 bichos em toda cidade - informa Marlene.

EDUCAR PARA TRATAR BEM

O que é unânime, porém, entre veterinários e redes de proteção animal é a necessidade da castração e cuidado com os animais junto de medidas sócio-educativas para uma mudança de cultura que reflita em ações práticas.

- As pessoas que maltratam deveriam assistir aulas, se conscientizar do quanto fazem mal ao bicho. Não adianta só pagar em dinheiro - defende Marlene.

Luciana atenta para o discernimento, posse responsável e a realização de campanhas:

- Vejo a mistura de política e proteção animal com muito receio. O animal não é um filho que, às vezes, acontece. Ele é uma opção. Você escolhe ter. Então, a pessoa precisa entender que não é descartável. Seria muito importante uma campanha de conscientização a respeito do controle populacional.

ADOTE! VEJA, NO SITE DO DIÁRIO, ALGUNS PETS QUE PROCURAM POR UM LAR

DENUNCIE O ABANDONO E OS MAUS-TRATOS

  • Batalhão Ambiental - (55) 3286-1455
  • Ouvidoria Municipal - 156.Também pode ser pelo e-mail [email protected] e presencial, nos guichês 28 e 29, da Secretaria de Meio Ambiente, no primeiro andar do Centro Administrativo (Rua Venâncio Aires, 2.277, de segunda a sexta-feira)
  • Polícia Rodoviária Federal (PRF) - 191 e (55) 3221-8277
  • Vigilância da UFSM - (55) 3220-8080 e (55) 3220-8279
  • Ibama - 0800-61-8080

REPORTAGEM - Pâmela Rubin Matge
FOTOS - Gabriel Haesbaert e Renan Mattos

Carregando matéria

Conteúdo exclusivo!

Somente assinantes podem visualizar este conteúdo

clique aqui para verificar os planos disponíveis

Já sou assinante

clique aqui para efetuar o login

O 1º Natal de um transplantado, de uma idosa em um lar de acolhimento e de uma mãe e sua filha recém adotada Anterior

O 1º Natal de um transplantado, de uma idosa em um lar de acolhimento e de uma mãe e sua filha recém adotada

A cada 7 pessoas, 1 é idosa em Santa Maria. E faltam políticas públicas para quem tem mais de 60 Próximo

A cada 7 pessoas, 1 é idosa em Santa Maria. E faltam políticas públicas para quem tem mais de 60

Reportagem especial